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[Conto] Como uma eterna criança...

Você já reparou como crianças são seres impressionantes? Eu acho elas enigmáticas, e ao redor delas, sobrevoa uma névoa infinita de conceitos filosóficos que gostaria de compartilhar com você agora.

Entenda... você como pai, ao ver seu filho, não está vendo somente o fruto do relacionamento que você teve com sua esposa. Apesar de seu filho ser o laço compromisal entre você e sua mulher, existe algo que faz dele ser muito especial; o fato de você poder depositar tudo de bom que você aprendeu na vida... nele. Pense em você quando criança. Obviamente, as coisas que seu pai lhe ensinou serão ensinadas ao seu filho.

Essa hereditariedade faz dos seres humanos, teoricamente, cada vez melhores, pois tudo que você não concorda com seu pai é eliminado e o que pode ser aproveitado é passado para seu filho. Isso, pode ou não, entrar em contra-partida com o que sua esposa passou na infância, então, cabe a vocês dois entrarem em um consenso para a melhor educação da criança.

Apesar disso tudo, existe ainda mais um aspecto que faz a criança ser algo único; além dela representar o seu passado, como já expliquei, ela também representa o futuro.

Ao ver uma criança, você não está vendo somente uma criatura juvenil. Você está vendo algo que, um dia, se tornará aquele que você nunca pôde se tornar. Formado na faculdade, chefe de empresa, não importa. Você está vendo o futuro de seu país ali, pois tudo que foi ensinado a criança na escola será aplicado na sociedade amanhã, devido a moldagem de sua personalidade em sala.

Como se não bastasse seu passado e futuro, existe a pureza, e para mim, esse aspecto é o mais importante e mais característico que qualquer outro. Se você der um brinquedo a uma criança, ela não terá frescuras ao dizer que não gostou. Apesar disso ser considerado mal educação, para mim a complexidade desse tipo de resposta me deixa abismado. Por que temos que ter certas imposições sociais? Não podemos ser como crianças e falar tudo honestamente e sermos honestos com nós mesmos?

Apesar dessas qualidades que beiram a perfeição, existe, um lado obscuro. Um lado negro que me recusei a ver.

Se você der uma borboleta a uma criança, o que você acha que ela o faria?

Arrancaria as asas, colocaria na boca, abrir seu pequeno corpinho com um palito... sim, a curiosidade e a pureza também trazem a tona um pouquinho de maldade, e, se eu tivesse ciência disso antes... minha história teria sido diferente.

Ora, eu, como um psicólogo, conheço as mais profundas camadas do cérebro humano, fruto de longas noites mal dormidas, estudando como um louco. Como um aluno estuda para a prova de recuperação no dia seguinte.

Um dia, voltando do trabalho pela tardinha, me vejo parado no meio da rua olhando para um orfanato, mais especificamente do parquinho próximo a ele. Várias crianças brincando. Tão honestas consigo mesmas... tão felizes. O mundo não poderia ser assim? Todos os dias, eu tinha que falar para todos que ia ficar tudo bem... que tudo ia dar certo.

"O que aconteceria a um ser humano com uma honestidade fora de série? Sem escrúpulos morais e sem limites sociais? Ele poderia conviver bem em sociedade? Como ele reagiria socialmente com outros indivíduos? Até que ponto isso chegaria? Será que esse ser humano poderia ser um novo patamar social da humanidade?". Essas perguntas me atingiram inicialmente e logo viriam a me perseguir até em meus sonhos.

A curiosidade era um combustível de fonte infinita, imprevisível, porém inevitavelmente excitante. Eu não podia parar. Eu simplesmente não podia.

Meu interesse científico nesse projeto estava ultrapassando as barreiras impostas pela minha mente e finalmente, depois de tudo pronto, eu consegui uma força interior... uma vontade inicial pra fazer tudo funcionar.

Apesar da curiosidade ser o combustível, era preciso mais. Era preciso, primeiramente, de algo que pode ser considerado até mais importante que a própria criança em si; estrutura. Com alguns contatos aqui, uma assinada de papéis ali, algum dinheiro tirado do bolso e alguma espera, eu tinha um laboratório completo, com uma sala de observação e um pessoal só meu. Não foi difícil, realmente. Se você soubesse como as coisas no Brasil são, você realmente se surpreenderia...

Você deve estar se perguntando como o governo financiou uma coisa dessas, não é mesmo? É simples: possibilidade. O que é uma vida humana? Um pequeno sacrifício a se pagar pela possibilidade de um projeto que poderia mudar o mundo. Uma vida de uma criança adotada não tem muita importância para o governo. Cem crianças adotadas não tem muita diferença pro governo ou mil. Quanto vale uma vida? Para a ciência, nada. Somos biologicamente iguais em tudo. A quantidade de átomos que tenho em meu corpo é igual a sua e nunca mudará.

Agora, falando na criança...algumas pessoas me considerariam um maníaco ao saberem que adotei uma criança que nada tinha a ver com meu desejo compulsivo e utópico... É uma questão de sacrifício para um bem maior e nada mais. Sacrifícios humanos foram feitos em inúmeros testes em toda a história da humanidade, assombroso, de fato. Mas como eu citei anteriormente: a realidade não se compara a ficção.

Não foi fácil conseguir uma criança legalmente devido a burocracia, mas após longos meses de espera, finalmente eu a tinha em mãos. O nome pouco importava. Fiz questão de colocar um nome bem simples para que fosse fácil de ser lembrado. Ser lembrado como o primeiro ser sociavelmente superior.

É incrível como os sentimentos destroem e corroem a razão.



Uma coisa que percebi, durante toda a minha vida, seja por causa dos pacientes, ou por causa de frustrações pessoais, é que nada nunca sai como o planejado. 90% do que você programa pode sair correto, mas aqueles 10% sempre o perseguirão. E na maioria das vezes, esses 10% são a parte crucial e infaltável no que você planeja. Isso é o que chamamos de Lei de Murphy.

Em uma situação normal, eu nunca deixaria algo assim acontecer. É óbvio e previsível que algo utópico assim nunca daria certo, porém apenas depois da falha, percebemos que algo nunca poderia sequer ter tido uma chance de ser um acerto.

Afundei a cara no trabalho. Eu já não comia, e não bebia. Minha vida era aquele projeto. Era o projeto de minha vida, dediquei tudo nele. Incrivelmente, o pessoal parecia compreender minha empolgação, e procuravam trabalhar no mesmo ritmo, explorando o potencial da cobaia.

Falando nela, o fato que provavelmente mais chama a atenção sobre a cobaia é, ironicamente, o fato dela ser ridicularmente comum. Na idade que a adotei, ela tinha 10 anos, e no final do projeto, tinha 16. Seus cabelos eram negros, e sua pele branca, com leves traços europeus em seu rosto. Seu corpo era esbelto devido aos exercícios que realizava e tinha uma altura padrão de um metro e setenta e cinco. Seus olhos eram negros e atentos, imprevisíveis. Não era possível dizer o que ele estava pensando. Nunca falava nada, apenas respondia o que era lhe perguntado sem preocupações. Não aparentava ter emoções e aparentava ser muito recluso, obviamente, devido ao seu desconhecimento de como seria o mundo lá fora.

Todo contato feito com a cobaia era monitorado e contato físico não era permitido. Ela precisava fazer atividades físicas rotinamente. Sua alimentação era selecionada e balanceada. Foi alfabetizada em laboratório, fazia exercícios matemáticos e químicos. Haviam alguns brinquedos, livros e uma pequena cama para descanso em sua ala, além de video-games e uma televisão, que servia apenas para contato do pessoal do projeto com a cobaia. Nas poucas vezes que falava algo, perguntava sobre a vida lá fora... de como eram as pessoas. As informações eram limitadas, obviamente.

Testávamos substâncias, vários métodos de lavagem cerebral. Explorando o cérebro da cobaia, já conseguíamos ver alguns resultados. Coisas leves, porém promissoras.

Ele tinha um nome, mas todos se referiam a ela como "A criança".

Uma coisa que poucas pessoas sabem é que o soro da verdade é uma mentira. O tiopental sódico, muitas vezes usado como "revelador de segredos" não funciona, apenas faz as pessoas liberarem informações aleatórias, que podem ou não terem sentido com a pergunta questionada.

Foi analisado a possibilidade de usar uma nova fórmula de soro da verdade, feita especialmente pelos profissionais do projeto, que alegaram ser uma versão funcional do mito envolvendo o soro. Entusiasmado pela ideia, começamos a trabalhar.

Altas doses de soro foram dadas a criança, e os cientistas acreditavam que o soro iriam deixar o efeito normal prolongado eternamente, atingindo assim a honestidade absoluta.

A criança reagira bem aos testes e provas feitas. Seu comportamento foi observado por alguns meses, até se notar algo estranho.

No começo, pensava-se que era apenas uma depressão passageira, porém, notou-se estava começando a recusar bebida e comida, apenas se isolando em um canto do quarto. Ela passava horas e horas ali, agachada, recusando-se a conversar com qualquer um. Essa situação se prolongou por vários meses assim, e não podíamos interferir em como as coisas estavam desenvolvendo, apenas observar.

Então, foi quando aquilo aconteceu...

É engraçado como as pessoas nunca esperam que coisas ruins aconteçam com elas... até acontecer.

Era noite e eu seguia apressado para o laboratório. Havia recebido uma mensagem de um funcionário, alegando que "estava acontecendo uma emergência.". Pensei que seria uma mudança brusca no comportamento da criança e estava excitado. Teria eu finalmente alcançado meu objetivo? Tudo havia chegado ao fim?

Como eu estava errado.

Me aproximei da estrutura, passei meu cartão de autorização e logo, a porta dupla abriu. Entrei, apressado, e naquele momento eu já sabia que algo não estava certo.

Talvez isso possa ser considerado como sexto sentido... mas quando algo não está certo, você no fundo consegue sentir devido a alguns indícios do seu inconsciente... como um ferimento... uma coceira que incomoda.

As luzes do laboratório piscavam, e eu não ouvia a barulheira dentro dele. Tudo ficava escuro, e por um momento, a sala se revelava novamente. Estava tudo muito quieto. Logo na entrada, era possível ouvir os doutores discutindo e suas passadas apressadas, junto com o som estridente e enjoativo som do ar condicionado.

Mas, naquele dia... nada. Apenas um silêncio perturbador. E um som característico das lâmpadas lutando para acender, junto com um som de estática. Algo estava errado... algo estava muito errado.

O clima rapidamente se tornou sombrio.

Dei alguns gritos, chamei por alguns nomes na entrada... nada. Apenas as luzes que piscavam e o silêncio. Um silêncio que me matava por dentro.

Avancei em direção a sala de observação da criança, passei mais uma vez meu cartão de identificação nas portas duplas, que abriram-me quase que instantaneamente.

Meu deus, como eu queria que não tivesse abrido.

Você provavelmente já sentiu aquela sensação de pânico quando algo terrível aconteceu, como uma notícia da morte de um parente... uma sensação de pânico constante, que bombeia medo e terror a cada batida do coração. Seu peito se torna mais pesado, você fica fraco, paralisado. Parece que está levando um tiro a cada segundo.

Agora imagine isso 10 vezes pior.

Foi isso que senti ao ver todos os meus doutores caídos no chão. Seus pescoços haviam sido cortados, em um extremo ato de violência. Havia vidro por todo lado, cadeiras quebradas... A sala piscava a cada segundo, me revelando o terror. Minha mente estava seca. Eu não entendia, não conseguia acreditar. Um vômito quente subiu me a garganta. Não podia estar acontecendo. O QUE estava acontecendo?

Meus olhos pairaram sobre os televisores de observação. A sala da criança... estava completamente vazia.

Minhas mãos tremiam, meus passos eram abafados... rápidos. Um turbilhão de pensamentos me perseguiam.

Cheguei na sala da criança.

A sala tinha um clima pesado. Um cheiro de sangue misturado com mofo era presente.

Até agora, o pânico que presenciei não se comparou ao medo e pavor que senti ao ver que a criança estava parada... na entrada de onde eu vim, o tempo todo.

Não consegui achar reação.

Minha própria criação se virando contra mim.

Nunca pensei que um sorriso de criança iria me causar calafrios.

Como um pai decepcionado olha para um filho...

Onde foi que eu errei...

Autor: Ronaldo Schimaichel

Esse é um dos contos que concorreu no concurso de contos de terror do blog.

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3 Comentários

  1. Conto muito bem escrito, muito bem detalhado, muito bem ambientado.
    Só senti falta de alguma super revelação no fim do conto, como se por exemplo "a criança" (a qual eu não consegui descobrir se era menino ou menina) tivesse transcendido as barreiras psicológicas que criamos quando amadurecemos e tivesse entrado em contato com alguma grande revelação sobre a existência, ou algo assim.

    Eu ainda estou intrigado com o fato dos melhores contos desse concurso serem sempre narrações em primeira pessoa. Eu nunca havia percebido esse detalhe da narração nos livros que leio, mas atualmente estou lendo O Demonologista, que possui narração em primeira pessoa (narrador-personagem) e vejo o quão importante esse detalhe é para o livro em si. É estranho perceber o quão importante é a escolha do narrador para uma história, narrador-personagem (que é a narração em primeira pessoa), narrador-observador (que é a narração em terceira pessoa, geralmente impessoal) e ainda existem também outros tipos de narradores, como aqueles que são capazes de ultrapassar a "quarta parede" e aqueles que já conhecem o fim da história (suas consequências) enquanto a contam, que seria o narrador-onisciente, que geralmente alterna entre terceira e primeira pessoa, pois é uma terceira pessoa que em algum momento participa da história como personagem, mas que não é o protagonista (tipo Bastion, para quem jogou).
    Enfim, o estilo narrativo é um elemento importantíssimo, que pode e deve ser explorada na hora de se escrever uma história, como o conto do #20 Crugalen, do Wendel Gonçalves que aproveitou para incorporar o estilo narrativo como fazendo parte da história de seu conto, anexando uma narrativa em primeira pessoa (uma carta) à um documento narrado impessoalmente em terceira pessoa (um relatório). Achei isso uma jogada sensacional.

    O conto que escrevi para este concurso, às pressas, foi em terceira pessoa. Mas após ler os contos da galera, eu estou começando a achar que contos de terror narrados em primeira pessoa são mais favoráveis ao bem-sucedimento do que os narrados em terceira pessoa.

    Ainda não comprei "Folhas Secas Daquele Outono" para ler, mas me pergunto qual foi a sua escolha de narrativa do Sky.

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  2. Achei que este conto seria algo que acabou não sendo... A forma como começou me fez esperar o que acabou não vindo. Claro que não foi ruim, mas com algums ajustes poderia ter sido ótimo!

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  3. O início desse conto apenas me fez refletir o quão eu estou avançado em relação ao resto da humanidade, de novo, digo, eu já sabia disso, mas esse conto apenas parece que reforçou tal saber... Mas no final não me surpreendido tanto, o cara era um psicólogo... Profissinão inútil essa.

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